24.10.18

Hors chant

Há os que lambem os sorvetes
na ponta do iceberg
Os que fodem bem melhor
entre o primeiro e o quinto
Os que não pedem licença
para chegarem a velhos
E os que guardam esqueletos
em armários sempre abertos
Os que já matam o bicho
ainda o sol não desponta
E os que lêem romances
e ninguém lhes faz de conta.

Há os que correm o risco
de sair mesmo ao papá
Há os que fazem crianças
nos lugares onde se morre
Os que só vestem a roupa
por outros já muito usada
Há os que ousam dizer
se ninguém estiver a ouvir
Há os que gostam da rua
se ela for mal frequentada
E os que saem à semana
pouco antes da madrugada
com ar de cair da cama.

Há quem durma no jardim
mesmo na hora de ponta
Há quem aprenda espanhol
por pura correspondência
Há quem ande mascarado
por horror ao carnaval
Há quem venda o seu cuzinho
para não vender o resto
Há quem cague fora de horas
e coma fora do prato
Há quem seja pau mandado
só para mandar num rebanho
E há quem chore baba e ranho
quando toda a gente se ri
de um disparate tamanho.

Há reis com reis na barriga
e rainhas só de copas
Há segredos que se dizem
só para alguém os guardar
Há todos os que só atraem
para não serem traídos
Há muitos que acendem fogos
que não sabem apagar
Há santos em cada casa
e alguns fazem milagres
E há demónios à solta
que só podem causar danos
a quem conseguir prendê-los.

Há quem fique p’ra morrer
com vontade de matar
Há quem corra por desgosto
porque cansou de gostar
Há quem não saia do sítio
para não perder lugar
Há quem se ponha na fila
para ser mais indiano
Há quem se ponha às escuras
para crescer mais depressa
E há quem acenda uma luz
e a mantenha sempre acesa
para ser sombra chinesa

Regina Guimarães, 40 x Abril