20.10.14

O terrível cometa de sangue

«Não, não era a mesma pessoa, já não era o Miraculum mundi, o arquivo mágico de todos os livros; todos aqueles que o viram na altura, relatavam, nostálgicos, o mesmo. Algo no seu olhar, outrora tranquilo, parecendo apenas sonolento na forma como lia, aparentava estar irremediavelmente destruído; algo estava reduzido a escombros: o terrível cometa de sangue, na sua corrida rasante, deve ter embatido de forma retumbante também naquela isolada, pacífica e alciónica estrela do seu mundo de livros. Os seus olhos, habituados durante décadas às delicadas e silenciosas letras do tamanho de patinhas de insectos devem ter visto coisas medonhas naquele curral de seres humanos cercado com arame farpado, pois as pálpebras caíam pesadas ensombrando as pupilas que outrora brilhavam de maneira tão ágil e irónica, sonolentos e com olheiras avermelhadas, os olhos, outrora tão vivos, dormitavam debaixo dos óculos reparados e atados a muito custo com um fio fino. E ainda mais terrível: No edifício fantástico da sua memória deve um pilar qualquer ter-se desmoronado, desorganizando toda a estrutura; pois o nosso cérebro, este mecanismo de comando moldado a partir da mais subtil das substâncias, este instrumento de precisão harmonizado com o nosso saber, é tão delicado que uma artéria obstruída, um nervo afetado, uma célula fatigada, que uma molécula deslocada é suficiente para fazer emudecer a harmonia mais esplendidamente abrangente e esférica de uma mente. E na memória de Mendel, deste teclado único do saber, aquando do seu regresso, as teclas bloquearam. Quando de vez em quando alguém vinha pedir uma informação, ficava a olhar para ele esgotado e não compreendia muito bem, entendia mal e esquecia o que lhe diziam – Mendel já não era Mendel, tal como o mundo já não era o mundo. A absorção total já não o baloiçava durante a leitura para cima e para baixo, mas sim na maior parte das vezes ficava sentado paralisado, com os óculos debruçados apenas mecanicamente sobre o livro, sem se saber se lia ou apenas dormitava. Muitas vezes, assim contava a senhora Sporschil, a cabeça, pesada, caía-se-lhe sobre o livro e adormecia em plena luz, por vezes fitava de novo, horas a fio, a estranha e fétida luz da lâmpada de acetileno, que lhe fora colocada na mesa naqueles tempos de escassez do carvão. Não, Mendel já não era Mendel, já não, um milagre do mundo, mas sim um fardo inútil de barba e roupa, que respirava com dificuldade, depositado sem sentido sobre a cadeira outrora pítica, já não, a honra do Café Gluck, mas sim uma vergonha, uma mancha suja, malcheiroso, desagradável à vista, um parasita incómodo e inútil.»

Mendel dos Livros, de Stefan Zweig, tradução de Álvaro Gonçalves, Assírio e Alvim