16.2.12

O Despertar do Monstro


Enki Bilal, A Feira dos Imortais / O Sono do Monstro, Colecção Grandes Autores de Banda Desenhada, Edições ASA / Público

Talvez não saibam, possivelmente porque não vos disse, mas eu sou uma pessoa (isso não invalida que seja uma besta) que começou a ler banda desenhada em 2011. O Tio Patinhas, o Donald e seus Huguinho, Zezinho e Luisinho, o Horácio, o Mickey, a Margarida e o Lucky Luke, na infância, não contam. Em adulta, atirei-me ao Corto Maltese (chama-me estúpida); depois, porque não bastavam «As Benevolentes», apresentei-lhes o «Maus» do Art Spiegelman (um livro que pensava comprar há anos, a par do «Palestina», do Joe Sacco; faço anos em Maio) e acabei aqui, no Bilal.

Antes de começar a minha pequena recensão escolar, devo dizer que «O Sono do Monstro» tem continuação, facto do qual não fui avisada. Um escândalo. Depois, que apesar de ter visto «Immortel, Ad Vitam» no cinema e de ter gostado muito (embora, é claro, não me lembre de nada), torci o nariz ao ver os desenhos de Bilal. Pensei «isto não é para mim». Enganei-me.

As histórias são projectadas no futuro (2023 é uma data comum aos dois livros, muito embora «O Sono do Monstro» ainda vá mais longe) e misturam, num cocktail muito agitado, ficção científica, fantástico, humor, política, apocalise e maminhas. O que é curioso num livro que resulta destes ingredientes é que o retrato de uma sociedade fascista, repressiva, totalitária, seja o retrato de uma sociedade reconhecível (fala-se, em 2023, de Mussolini), ainda que a alta sociedade se distinga da ralé pintando a fucinha à moda tribal (no fundo, duas vezes passado reciclado). Apesar das projecções futuristas, Bilal está menos interessado em ser um visionário como o foi Orwell (eu perguntei-lhe), e mais focado em propor uma reflexão sobre a repetição da história, a nossa comovente resistência em aprendermos com os nossos erros, a desmemoriação individual e colectiva, a crença cega na tecnologia e, claro, a importância de ter maminhas (qué que foi?). Não há, portanto, uma contaminação do fantástico nas histórias de Bilal. É verdade que em «A Feira dos Imortais» há deuses, mas até os deuses precisam de gasolina. E Nikopol, depois de habitado (não perguntem) por um deus demasiado humano para as leis da eternidade, acaba os seus dias a recitar Baudelaire, sem conseguir parar de rir, acabando por nos passar essa doença. Há lá coisa mais familiar que a poesia e a demência?