28.9.10

Now it’s dark




Passaste os meses de uma gestação convencida de que rotularas e arquivaras os teus fantasmas; de que substituíras problemas por projecções, adormecendo os antigos com ansiolíticos, adiando os novos com contraceptivos. Certa de que os transformaras em neblinas que pairariam, indolentes e anestésicas, até se dissiparem nos regulares exercícios da respiração. E depois isto. O subconsciente a trocar-te as voltas da corda ao pescoço, dispondo numa bandeja a tua cabeça embalsamada, para que visses todos os teus medos mais antigos conservados intactos – filme de 2010, género: drama, edição de autor. Memória em desinfestação apanha vírus e inflama – parangona de jornal diário em caixa alta. E eu a acusar-te: se não estivesses incontactável, talvez me pudesses ter socorrido, talvez eu não tivesse sido violada. Uma acusação que eu apontava mentalmente para mim própria, ou não tivesse sido eu a decretar a nossa incomunicação. Mas isso foi depois. Antes eu entrei em tua casa. O pesadelo começou aí. Co-produzido por David Lynch, everything in its awkwardly right place, e a certeza de que tão fina lucidez estaria interdita à consciência. Foi ver baralhar e voltar a dar os mesmos ingredientes, então espelhados em subterfúgios – cenário inverosímil e hiperrealista. Tão obsceno que sou incapaz de descrevê-lo sem sentir que me autoflagelo num filme pornográfico, mas que desejo contar-te por sadismo solidário. Brilhante arquitecta, pensarias, orgulhoso, morto de coração. E a trespassá-lo como música fúnebre, o sentimento de sobra ressequida, um corpo que se passeia entre divisões sabendo-se estranho, excluído, sem lugar. Entrei no teu quarto; dormias. O que fazia ela, minha amiga, nunca tua, numa cama improvisada? Quando o percebi era já outra noite, mas não tarde demais para pronto se fazer pranto. Everything in its awkwardly right place, incluindo eu, a mais. Diante dos meus olhos, a inocência dos princípios e os sonhos malditos, as dúvidas esperançadas e as respirações sincopadas, a delicadeza dos gestos que ignoravam ainda os punhos fechados. Sobre o teu sono profundo o meu fantasma ávido de mundo, prescrito, interdito. Now it’s dark, dizia Frank Booth a Dennis Hopper. A sobrevivência é um mal necessário para quem ainda tem reservas de inocência e café para gastar. Piora para quem não tem talento para ser futuro e menos ainda para te fazer passado.