Pela manhã, um pássaro te pousara nos olhos.
Grandes e declinados.
Clandestinos.
E eu sabia o que teria de pagar pela sua alegria
grave.
Iria, pois, usá-los.
Usar o teu olhar – “não se escolhe ser triste” –: melhor
o teu Lugar; aquele de onde te havias exilado, para escrever
o mais nobre e rigoroso Poema
dentre os já acontecidos.
Tal como sabia que éramos ambos
únicos e raros
frágeis quais insectos que duram um só dia.
Triste.
Um só dia, meu amor – um só dia!
Um orgasmo em noite
desabado.
Triste. Muito triste, tão vil o medo de não rasgar o véu
da mediocridade, protegida
sempre
pela sua essência: Goethe dialogando
contigo.
Tu: Um amor só o é se for despojado de si. E ele: Não merece o
nome
de poeta aquele que apenas exprime os seus próprios
sentimentos
Tinha, pois, de forma violenta, idêntica à crueldade
das crianças e da natureza,
nua,
enxuta,
de reflectir sobre o que não mais exige
consolo: o pesadelo de ser (e de estar) de passagem
pela vossa escrita
sem poder evadir-me
tal como as árvores e a perda das suas folhas
no outono.
O que faz a ruína pelo pó – sacro – de duas palavras.
O que faz um poeta
até chegar à ordem e cuidado da luz
divina.
Quem pode entender que a paixão se torna majestade
só após se terem vivido nela (e com ela) os silenciosos momentos
da alegria que antecipa o Poema
evadido
mas que regressa
tal como o filho pródigo
à graça acolhedora
da família.
Quem pudera entender na viva carne de um só dia
a arte
que recupera a pálida paciência
do metal adormecido
do rio
e o fundo marinho das vozes do Tejo
e de uma Lisboa em cinzas – após uma sensação
“de doçura para toda a vida.”
Toda a vida.
Como a que me confessaste experimentar
e desejar manter
comigo.
Só que bastou um movimento de ar penetrando a fractura
das pupilas
para demolir-lhe o leito e as colinas; um zumbido
para virar o grito das aves
e navios
que um nada pode matar-me – haviam-me confessado
os teus versos.
Um nada.
A monstruosidade: a proliferação celular e irreversível do tumor
no rosto de um homem
sem olhos, nariz,
boca – sentado num degrau – este último, sim, sozinho.
A clarividência de sermos dementes,
iguais,
dialogantes e desacertados,
únicos
e raros,
porque a Poesia dispara
no que une o corpo do insecto à asa
e o céu
à mansa melancolia de uma verdade com sabor
amargo: a que se apercebe
de que a tua errância pede terra firme
e de que tenho de levar até às últimas consequências
e apenas por duas palavras,
por duas palavras,
a tua serenidade e a minha
anarquia.
Inquietos, no coração um do outro, por caminhos diferentes
nos dissemos
num princípio de tarde
cada vez que perco invisto – uma bomba prestes a rebentar
no metro da cidade,
um correr de mãos dadas; mas porque se diz,
pergunto, só uma parte da verdade; e, nela, uma parte da parte:
coisas
tão infectadas de mentira,
de horror e de maldade, se o destino da primeira,
a única,
a interminável,
é a que expressa o susto de se perder
o que nunca possuiu?
Mas sente agora a minha crueldade
sem defesa,
porque tu confesso e confesso em verdade
e com verdade: se de alguma coisa tive medo
foi do teu riso trémulo
e poroso como um
desmaio,
do recorte dos ombros,
da tua camisola verde – de um poema
de Byron.
E, sobretudo, sim, da tua grande, da tua imensa,
tristeza.
E só por isso
me doeu o deserto que te (e me) arrastava; tantas as mágoas,
as afinidades,
as cumplicidades.
Porque nós somos únicos
e raros.
Juro.
Mas também juro”pela maldição dura que em minha alma
habita”, que encontrarás uma lâmpada acesa
na força juvenil
da escrita.
Eduarda Chiote, O Meu Lugar à Mesa, Edições Quasi