Esse teu mundo, de que te orgulhas tanto,
não sei se tem a paz do ramo seco
onde a lagarta faz o seu casulo.
O corpo, é certo, «todo de olhos feito»,
é o mais belo e mais sensível fruto
da natureza, e a todos causa espanto;
e tens, dentro do crânio, um arbusto pensante,
prodígio de design e invenção,
com que às vezes tu pensas, outras não.
E a tua voz, concedo, tem
do mel toda a doçura, e o veneno,
e não a alcança o chão cantar do grilo,
nem o silvo vulgar de aves volantes.
Mas vejo como o escondes, esse corpo,
e o julgas precioso e permanente,
e como perde o brilho com a idade,
e se desfaz em nada, de repente;
como o mutilas, em silêncio e medo
e recusas, e tratos, e contratos,
e assim de dia a dia te transformas
em fumo fátuo sem calor nem chama.
Não assim nós. A vã formiga, mesmo,
carregando penedos e montanhas,
é mais forte que tu, e mais discreta,
e o cru automatismo que vês nela
é só mudo louvor da natureza. E tu,
da tua voz, a doce, o que fizeste?
Que lâminas e pregos lhe puseste;
de que arame farpado a rodeaste? Enquanto
calados, nós, não nos mentimos tanto.
Não que sejamos santos; também eu,
o mais sábio de todos os insectos
(aracnídeo seria mais correcto;
faço-me aqui servir do que me excede),
asceta, anacoreta, e confessado adepto
de rigorosa dieta vegetal
por respeito da vida no universo,
às vezes, numa raiva de apetite,
lanço os meus fios de caça, e apanho
algum bicho menor, algum mosquito,
a consumir, de preferência, em verso.
Mas vê: está vazio o casulo, aberto
por uma ponta, em círculo perfeito,
e da lagarta só ficou um resto
de pele morta, branca como a tua;
vem tu, humano, transformar-te em ave,
sem temor nem cautela, e em silêncio;
já a conversa fez que me escapasse
o voo inaugural da borboleta.
António Franco Alexandre, Aracne, Assírio e Alvim