17.9.15

A Palavra



«Entra o responsável cultural.

O RESPONSÁVEL CULTURAL - Eu cá nunca vi morto que ressuscitasse.

DE TRAGÉDIA - Isso é porque tens crostas nos olhos. Essa crosta aí parece-me uma crosta cultural, é a mais perigosa de todas.

O RESPONSÁVEL CULTURAL - Há várias formas de expressão que dispensam bem a palavra, e essas formas de expressão são até mais do que a palavra, porque dizem tudo o que a palavra não é capaz de dizer.

DE TRAGÉDIA - É difícil dizê-lo de maneira mais didática. Estamos aqui perante um verdadeiro propagandista da sociedade de consolo.

O RESPONSÁVEL CULTURAL - O que está para além da linguagem é o que visam hoje, de maneira muito atual, as obras mudas, mas plenamente comunicativas, as que, libertadas da afronta que a palavra faz à comunicação, comunicam o essencial sem o formularem.

Sai o responsável cultural.

DE TRAGÉDIA - O futebolista que é hoje o escritor, e o designer de escova de dentes que é hoje o filósofo, e o stripper que é hoje o orador, e o homem da tômbola que é hoje o político resolveram todos os antigos equívocos da linguagem.
Ora que feliz acontecimento.
Já a humanidade ansiava por conhecer este disparatado Ulisses que, sem dizer uma palavra para a caixa, transforma a água em vinho. Mas ei-lo que agora dribla, este nosso futebolista, o espírito pousa onde quer, e ele pensa com os pés, o que é até uma economia de papel.
Reconheçamos que o nosso futebolista ou a fritadeira elétrica ou a dança do ventre fazem coisas que Cristo não faz: fazem o que fazem. Na perfeição, aliás. São uma forma secular de milagre. A batata frita num ápice, o estádio em delírio, a pornografia para crianças, tudo isto são verdadeiros milagres. E eles fazem estes milagres todos sem pronunciar uma única palavra!
Tanto melhor. É mais moderno, fica melhor na fotografia, fica melhor.
Ficamos felizes.
Eu até já nem consigo ouvir o espírito a chorar sob as cinzas.
Sem palavras e sem promessas ficamos bem, ficamos bem melhor; sem palavras e sem promessas a palavra fica limpa, os poros fechados; sem palavras e sem promessas o cabelo fica revitalizado, a terapia adere impecavelmente ao colete, as pílulas inebriam quanto baste, e o fato cai sóbrio, sem exageros. Está-se bem, fica-se bem, sem palavras e sem promessas, nada de obsceno e tudo muito chique, percebe-se na perfeição o texto que não quer dizer nada, e são tão dramatúrgicos os figurinos de bege e o palco vazio como é de bom-tom, e os efeitos de luz levam a assinatura de um senhor a quem nunca se agradecerá o suficiente e que acaba de partir para Tóquio onde assinará uma ópera completamente revisitada. A ópera também fica bem. Porque lá os cantores são como os futebolistas, não falam, e desde que eles representam com naturalidade, já nem a ópera é ridícula e agora até combina com os apliques da sala.
Sem Palavra e sem Promessa, percebe-se melhor o texto que não diz nada, vemos até melhor o vazio, tão belo na verdade.
Calem-me esse exegeta da elegância, que eu já nem consigo ouvir o espírito que chora sob as cinzas.
Não? A bomba de merda decorativa bombeia ainda, permiti-me então gritar, pronto, vou gritar.»

Oliver Py, Epístola aos Jovens Atores Para Que Seja Dada a Palavra à Palavra, tradução de Maria Luísa Malato, Deriva