2.3.10

Menininha Limão




As mudanças de casa desencadeiam simultaneamente despedidas e reencontros. As primeiras são documentadas, os segundos dão-se porque a documentação já existe sem que a recordemos, de tão perdidamente encafuada e remetida a uma gaveta. Neste andamento (em dó maior), recuperei algumas pastas de recortes da minha adolescência, início de juventude, tempo em que eu agrafava e empilhava, com dedicação, registos e fragmentos do mundo. Crónicas da Adília Lopes numa altura em que eu não sabia quem era a Adília Lopes, porque eu lembro-me de quando soube quem era a Adília Lopes; tiras do Calvin & Hobbes; receitas de culinária – uma surpresa, para quem se tinha como alguém que sempre detestara cozinhar, e uma prova de que nos vamos falsificando através de uma memória plástica e fácil de impressionar; crónicas de José Eduardo Agualusa, que entretanto deixei de ler sem motivo que o justifique; todos os postais de exposições a que ia, porque eu ia a todas as exposições; uma publicação do Bloco de Esquerda, quando quase todos os meus amigos eram militantes do Bloco de Esquerda, padrão em relação ao qual sempre mantive alguma reserva; inúmeras reportagens e entrevistas; perfis de pintores e outros artistas; críticas jornalísticas de espectáculos a que assistira; uma recensão crítica a um livro do Julian Barnes pela Ana Cristina Leonardo numa altura em que eu não sabia quem era a Ana Cristina Leonardo; poemas de Manuel Alegre (continuo indecisa); em suma, a prova diante dos meus olhos de que era necessariamente uma pessoa diferente quem com tamanha dedicação recortava pedaços do mundo dos outros, fazendo-o seu. Há nesta exaustiva recolha de informação uma urgência em fixar o mundo, própria de quem ainda reserva para si alguma inocência. Gosto desta pessoa que se desfila nas minhas mãos, não fui capaz de a deitar fora. Guardarei os arquivos mortos com a convicção de que a sua distância ao momento presente é o que os torna essenciais à revisitação da memória. Porque nós também precisamos dos artefactos para nos lembrarmos de quem fomos.