1.12.07

Três (muito amados) começos de livros

Almocei bem, porque comi dois ovos quentes com batatas fritas e favas. Gosto de favas, mas não secas. Não gosto de favas secas porque dentro delas não há vida. A Suíça está doente porque só tem montanhas. Na Suíça, as pessoas são secas porque não há vida dentro delas. Tenho uma criada seca porque sente. Pensa muito porque a secaram, no outro sítio onde ela esteve a servir durante muitos anos. Não gosto de Zurique porque é uma cidade seca, há muitas fábricas e muitos homens de negócios. Não gosto de homens secos, por isso não gosto dos homens de negócios.

Nijinski, Cadernos, Assírio e Alvim

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– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro…Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida…compreende?...a nossa vida, a vida inteira, está ali como…como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa.


Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio e Alvim

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Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos pelo céu da boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li.Ta.
Pela manhã, um metro e trinta e dois a espichar dos soquetes; era Lo, apenas Lo. De calças práticas, era Lola. Na escola, era Dolly. Era Dolores na linha pontilhada onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita.
Teve uma precursora? Teve, sim, teve. Na verdade, talvez até não houvesse Lolita nenhuma se, certo Verão, eu não tivesse amado uma rapariga-menina inicial. Num principado junto ao mar. Oh, quando? Quase tantos anos antes de Lolita nascer quantos eu contava nesse Verão. É sempre de esperar num assassino uma prosa de estilo caprichoso.
Senhoras e senhores do júri, a prova número um é o que os serafins, os simples, mal informados e nobremente alados serafins, cobiçaram. Reparai neste emaranhado de espinhos.

Vladimir Nabokov, Lolita, Colecção Mil Folhas, Público